Parte I - Célia Correia Loureiro
Apertou o pacote contra o estômago e, ao sair para a rua, não resistiu a olhar para os dois lados. Era precisamente esse tipo de comportamento que tinha de controlar se não queria dar nas vistas. Aquele embrulho, que encaixava com precisão no embalo dos seus braços, continha muitas vidas. A sua tornara-se uma delas assim que concordou em transportá-lo.
Caminhou com uma falsa determinação. Parecia ter-se esquecido
de como andar. Os passos embrulhavam-se uns nos outros, como que enrodilhados, mas
ela continuava, mantendo sempre os olhos fixos nos pés, nos sapatos discretos e
nas passadas apressadas. Tinha de se recompor e, acima de tudo, tinha de agir
como se não carregasse uma bomba nos braços.
Não
é uma bomba, não é nenhuma bomba, repetia. Mas são muitas vidas, muitas
vidas.
A
meio da distância a percorrer, começou a suar. Era cedo demais para suar e ter
essa consciência fê-la transpirar ainda mais. Sentia, ao avançar por entre a
multidão taciturna, que todos tinham os olhos postos em si e naquilo que fazia.
Parecia mesmo que todas as atenções estavam fixas naquilo que transportava. Não
é nenhuma bomba, sibilou, e pareceu-lhe que mexia os lábios, tornando-a
ainda mais estranha aos olhos dos outros transeuntes.
Urgia
motivar-se a continuar, uma vez que não estava a ser bem-sucedida na arte de
bloquear os pensamentos. O medo golpeava-a no peito, tornava cada golfada de ar
insuportável, expectante. Eu consigo, ecoava dentro da sua cabeça.
Ninguém a conhecia por ser corajosa ou por dar nas vistas. Tinha sempre passado despercebida ao fundo de uma sala. Diante dela teciam-se conspirações e confessavam-se crimes. Era costume que os segredos voassem das bocas mais inesperadas na sua presença. Não, não era corajosa, e era por isso que sentia que vertia as tripas sobre a terra ressequida ao avançar.
Estava a começar a disciplinar a respiração quando um homem de negro se atravessou no seu caminho, de mão estendida:
– Uma moedinha para esta alma perdida?
Este sobressalto fez com que ela desviasse a atenção dos próprios sapatos, empoeirados da marcha, para se concentrar nas sobrancelhas espessas do estranho. Considerando-o inofensivo, passou por ele sem lhe dirigir uma única palavra.
A interrupção obrigou-a a refazer o trabalho mental de controlar a inquietação do estômago. Era habitual que lhe doessem assim as pernas, ao caminhar? Estaria a andar demasiado rápido? E, levantando a cabeça para se assegurar de que a inquietude era em vão, quase foi tolhida por um veículo em movimento. O susto atirou-a para o caos.
O pacote caiu, amachucou-se. Fitou-o, horrorizada, vendo-o passar para outras mãos. Alguém estava a limpar o papel pardo que continha a sua vida – e muitas outras vidas – com a manga do casaco. Os rostos sisudos dos seus conterrâneos debruçavam-se sobre a mulher de joelhos, estendiam-lhe o pacote e ela, de boca seca, pôs-se de pé e alçou o coração do abismo de vertigem em que este tinha caído.
Que sensação de desesperança era aquela? Estendiam-lhe o embrulho, a sua incumbência, a sua vida, e ela olhava-o com desconfiança, petrificada pelo que acabava de acontecer.
Sob nenhuma circunstância, está a entender? Relembrou, de olhos enormes fixos no pacote. Sob nenhuma circunstância e nem por um único instante deve deixar isto sozinho, não pode desviar os olhos dele, entende? Sim, ela entendia, mas insistiam. Nem pode deixar que ninguém o manuseie, ficou claro? Ficou, ficou, pensava Vitória, os olhos maiores do que a fome que se lhe desenhava na cara.
Aceitou o pacote da mão de um estranho. Um estranho tinha tocado no pacote. Estaria tudo perdido? Estariam a vigiá-la para se assegurar que tudo corria de acordo com o estabelecido?
Sacudiu os joelhos com a mão livre e encontrou presença de espírito para agradecer a gentileza ao estranho, sem se reter a decorar-lhe as feições.
Virou-lhe as costas e demorou apenas um momento a situar-se no cruzamento. Muito bem, o caminho prosseguia para sul. Vislumbrou as velas das embarcações e a linha azul-índigo no horizonte. Respirou fundo: estava quase.
E se lhe perguntassem se o pacote tinha passado por outras mãos? E se tivessem presenciado o acidente? E se quisessem saber os pormenores da fisionomia e das vestimentas do homem que tinha apanhado o pacote e lho tinha devolvido?
Voltou a baixar os olhos quando se aproximou do porto, porque sabia que a esperavam. Ali podia ser reconhecida, podiam tentar demovê-la. Apertou o pacote com mais força, os lábios lívidos de tensão.
Não é nenhuma bomba, tartamudeava, já sem se importar que a boca se movesse. São vidas, muitas vidas. A minha vida…
Os barcos ali ancorados sucederam-se na sua visão periférica: não se atrevia a levantar a cabeça, a procurar com o olhar aquele que lhe tinham descrito. Sabia que, fitando as tábuas do pontão, exibia um comportamento muito mais suspeito, mas não tinha como evitá-lo. Não sou corajosa, lembrou a si própria, já me arrisquei demais.
Chegando ao barco de proa amarela, ergueu o rosto em reconhecimento. Identificou o nome do proprietário no casco e não demorou muito para que um cão de focinho amigável assomasse à cabine.
Estendeu-lhe o pacote, como havia sido instruída, para que o cheirasse. Logo a seguir, o cão correu para a cabine a latir.
O barco ondulava ao ritmo das vagas e Vitória esperava, com o pacote de novo cingido nas mãos, de pés assentes no pontão. Mexeu os pés sobre os cristais de sal e depois ouviu a voz rouca do destinatário a agradecer-lhe, removendo-lhe o embrulho das mãos. Sentiu-se vazia sem aquela missão e viu-se incapaz de deixar o pontão ou de parar de olhar para o homem e para o papel pardo da entrega.
O marinheiro iniciou as manobras sem fazer perguntas e sem tecer comentários. Pousou-o ali mesmo, a seus pés, à mercê da espuma do mar e perante o olhar da mulher de dedos trémulos, de boca entreaberta e de olhos grandes.
Vitória deixou-se ficar enquanto o velho libertava as cordas das amarras do pontão e, empurrando a estrutura com as duas mãos, punha a embarcação em movimento. Viu-a afastar-se, primeiro devagar, para depois, o casco como que se entrelaçando numa onda, a ver tombar para diante, rumo ao mar alto.
No pontão, à medida que o barco desaparecia em direção ao azul de distâncias impossíveis, ficou apenas a mulher de sapatos gastos e punhos cerrados. Eu não sou corajosa, tartamudeava, eu nunca fui corajosa.
Que belo inicio e fiquei muito curiosa para saber o que se passa aqui xD
ResponderEliminarO que contem o pacote??? Mistériooo.... vou ja ler o proximo ;D
Que excelente inicio! Gostei muito da escrita da Célia! Parabéns Dora, por este projeto incrível 😉
ResponderEliminarQue início promissor... envolvente, misterioso e muito bem escrito. Parabéns Célia!
ResponderEliminarAdorei o inicio e com esta escrita, quem é que não gosta??????
ResponderEliminarVou já ler o próximo!
Excelente começo, muito bem elaborado, parabéns Célia. Patrícia Barbosa
ResponderEliminarCélia, eu sei que não vai acontecer, mas eu queria mesmo era que escrevesse as restantes 300 páginas desta história ☺️ (sem demérito para os restantes que ainda não li o resto, mas com este início e a tua escrita dá vontade de ter muito mais!)
ResponderEliminarUau que ansiedade logo de início!
ResponderEliminarAgarradíssima nas primeiras páginas como gosto :)
Simplesmente espetacular que início extraordinário, agora tenho mesmo de ler esta história 👌
ResponderEliminarQue início tão bom!
ResponderEliminarQue bom começo!!
ResponderEliminarEstranho, intrigante, curiosa. Vou ver o que segue
ResponderEliminarGrande início! Gostei muito de conhecer a escrita da Célia! Muito bom!
ResponderEliminarExcelente inicio. Que nervoso miudinho para saber o que contém o pacote😀
ResponderEliminarGostei muito! Da escrita e deste início tão interessante.
ResponderEliminarUma pessoa fica ansiosa e na expectativa enquanto a história se vai desenrolando.
Adorei o final, achei tão bonito! - "... eu nunca fui corajosa."
Parabéns a todos! Agora que li a primeira parte já não consigo parar ����
ResponderEliminarGostei muito do início. Com certeza a Célia tinha uma ideia do que ia no pacote. O que seria?
ResponderEliminarAdorei o começo. Muito suspense e muito bem escrito na minha opinião. O que terá o embrulho? Tenho de continuar para saber.
ResponderEliminarQue início incrível e intrigante. Muito curiosa com o que vai acontecer a seguir! Adorei a escrita da Célia!
ResponderEliminarParabéns por este inicio tão empolgante.
ResponderEliminarQue fixe cheguei a ficar com o coração na mão 😁 mas adorei
ResponderEliminarA escrita da Célia é tão bonita!! Bela maneira de começar, tanto mistério...
ResponderEliminarQue início!!! Muito misterioso 😲😲.
ResponderEliminarJá li dois dos livros da Célia ("A filha do Barão" e "Uma Mulher Respeitável") e por serem histórias de histórias de época, a escrita é um pouco diferente.
Ansiosa para continuar a ler para ver que caminho esta história nos vai levar.
Que excelente início!
ResponderEliminarCuriosa para saber se a Célia teria alguma ideia para o pacote ;)
Já começa com mistério, tem toda a minha atenção. Muito bom Célia!!! Continuando...
ResponderEliminarParabéns. O início está fantástico e ficamos motivados para continuar.
ResponderEliminarQue grande início. Deixá-nos curiosos com o desenrolar da ação. Ansiosa por ler o restante.. E fiquei com vontade de ir ler os livros da Célia Loureiro que não conhecia mas é muito cativante. A iniciativa da Dora foi extraordinária. Parabéns a todos.
ResponderEliminarFiquei com curiosidade sobre esta Vitória, esta, que a Célia escreveu. Esquálida e de sapatos gastos, insegura mas sobrevivente... Esta Vitória não era detetive, nem agente. Percebo o pormenor onde pegaram para ir por aí e gostei do resultado final do esforço conjunto, mas fiquei com a sensação de que se perdeu uma protagonista na história errada.
ResponderEliminarParabéns a todos, por um projeto nada fácil de concretizar e que, apesar de se desviar do que achei, foi bem concluído! E parabéns em especial à Célia que, em pouco mais de meia dúzia de parágrafos, desenvolveu uma personagem tão intrigante. :)
Só li o "Demência" da Célia, que é dos meus livros portugueses preferidos de sempre, e com esse livro tirei logo a conclusão que a Célia é genial a começar estórias que nos agarram. E que início que aqui está! Que mistério é este? Que pacote é este? Em que é que a Vitória está metida? Vou já ler o próximo!!
ResponderEliminarExelente começo...já estou a criar hipóteses😉 a ver como os teus colegas deram continuidade a este mistério.
ResponderEliminarParabéns pelo projeto!
Que excelente início.
ResponderEliminarAdorei a escrita, adorei o mistério 😉
Fantástico início, não conhecia a escrita da Célia mas gostei imenso do que li.
ResponderEliminarSuper empolgante... um stress até ter a certeza que o pacote chegava a "bom porto"! Parabéns.
ResponderEliminarBom começo. Gostei de conhecer mais esta escritora. Será que a Célia tinha alguma ideia do que estava no pacote? E será que o conteúdo do pacote dos colegas escritores teve alguma coisa a ver com a ideia original da Célia? Preciso de ler o resto.
ResponderEliminarMuito bem! Incitante. Venham mais!
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