Paula VIII - Paula Cordeiro

 

Ficou calada. Desviou o olhar, procurou um ponto onde fixar a sua atenção. Gonçalo falava, mas Vitória só pensava numa forma de sair dali e arrumar este tema para sempre.

São vidas, muitas vidas. A minha vida.

Vitória tinha agora outra missão, que se autoimpôs, de descobrir que vidas eram aquelas e que pacote era aquele. Sobretudo, o que tinha feito Gonçalo estar envolvido nesta história e por que razão a queria reconquistar agora.

As pessoas nunca são o que pensam que são e, raramente, sabemos quem são. Gonçalo foi sempre egocêntrico e manipulador, sem perceber como pode o manipulador ser manipulado ou como pode a pressão da manipulação tornar-se uma força que nos norteia e torna mais fortes, nessa ânsia em escapar. Quando se conheceram, Gonçalo não percebeu que foi Vitória que se aproximou dele e o fez apaixonar-se, como não percebeu que a sua beleza provocadoramente frágil foi definida ao mais ínfimo detalhe para encaixar no seu perfil autocentrado. Era sempre ele que falava e tomava decisões, enquanto ela lhe sussurrava juras de amor e se colocava nas suas mãos para ser sua, sem nunca o ser. Vitória tinha um plano e precisava de alguém para o executar, encontrando na personalidade de Gonçalo os pontos fracos que a levariam a conseguir cumprir o plano do qual foi sempre peão. Quando integrou a agência, imaginou-se sempre em missões perigosas, repletas de ação, como sempre viu nos filmes que povoavam a sua imaginação e lhe ocuparam a mente em muitas tardes da sua adolescência. Acabou numa esquadra, mas soube sempre que queria envolver-se em atividades dominadas pela adrenalina. Era curiosa, perspicaz e inventiva, mas nunca foi corajosa, sentindo-se muito frustrada por raramente deixar o trabalho de secretária e estar no terreno, em ação. Quando lhe entregaram uma missão de sedução, sentiu-se subitamente viva, mas novamente defraudada por não ter percebido a razão pela qual lha tinham entregado. Eram 15 anos a viver numa espelunca, a comer comida de pacote e a ter poucas oportunidades para fazer o que sempre sonhou. Agarrou esta oportunidade como se estivesse a agarrar-se à sua própria vida. Estudou, treinou e avançou sem o medo que sempre a impediu de crescer, a confiança que lhe faltava e a coragem que pensava não ter. Era, afinal, uma mulher de fibra que, mesmo tendo falhado ao apaixonar-se por Gonçalo, conseguiu seguir o plano à risca, usando-o para se aproximar dele, ganhar a sua confiança e, sob a capa indefesa, encontrar a lista de que tanto se falava e que era a razão pela qual precisava de entrar no círculo íntimo de Gonçalo. Sem nunca pensar no conteúdo da lista e sempre focada em cumprir o seu objetivo, foi uma agente mais secreta do que o próprio segredo da missão, a ponto de quase aceitar casar-se com Gonçalo. Revia as imagens de Paris e os clichés que sempre abominou em catadupa, desempenhando o papel que ele lhe conhecia melhor: a mulher submissa e dependente que chega ali movida pela curiosidade e que se rende aos encantos de um homem que quer tudo, menos que descubra o que contém o pacote que a própria transportou.

— Gonçalo, o que estava naquele pacote?

Olhou-a em silêncio, sorriu com os olhos e apressou-se a dizer:

— Nada, não estava nada no pacote. O pacote eras tu.

— Que estás a falar, Gonçalo?

— Tu tinhas a missão de me conquistar, para me poderes roubar, mas não contaste com a possibilidade de te apaixonares e, quando percebeste que eu descobri o teu jogo, fugiste como a menina indefesa que fingiste ser. Achavas mesmo que um predador como eu não te apanhava na jogada?

— Eu não podia casar-me contigo. Eu não queria e não quero casar-me – vociferou.

Sentou-se. Baixou a cabeça. Engoliu em seco, regressou à infância, sentiu-se novamente impotente. Tudo o que havia conquistado para si caía como um castelo de cartas e confirmava, de lábios cerrados, o que sempre soube, que não era corajosa e que mesmo sendo sempre a melhor da turma, nunca seria a melhor em nada, o seu lugar era naquela espelunca e atrás de uma secretária a preencher papéis.

— Queres que te diga qual é o teu problema, Vitória?

— Eu sei muito bem qual é o meu problema, não preciso que mo digas, muito menos em voz alta.

— Estivemos juntos tempo suficiente para te conhecer.

— Ninguém me conhece, Gonçalo.

— Eu conheço, melhor do que pensas.

Instalou-se um silêncio constrangedor, pois neste jogo de dar e receber acabamos sempre por mostrar a nossa maior fragilidade.

— Ainda queres saber o que está naquele pacote?

— A minha coragem — afirmou Vitória.

— Está muito mais do que isso.

— Do que falas?

— De um passaporte para outra vida, na qual escapas de ti própria e ao que te persegue, na qual podes ser quem tu quiseres, livre da pressão que sempre te colocaram.

— Queres dizer que tudo isto se resume a um jogo?

— Melhor do que isso, meu amor.

— Por favor, não me chames amor.

— Casámos. Esteve aqui um padre e o conservador, estamos unidos para sempre.

Levantou os olhos do vestido branco, olhou as mãos e viu novamente a aliança no dedo. Tentou tirá-la, queria atirá-la ao chão, vê-la desaparecer por entre as frestas do chão de madeira daquele barco velho.

Gonçalo agarrou-lhe as duas mãos, baixou-se, juntou as suas mãos no seu peito e disse-lhe que, de tudo o que viveram, a única verdade era o amor que sentiam um pelo outro.

— Estás enganado. Eu nunca te amei.

Comentários

  1. Ok que grande reviravolta aqui, nao sei ... vamos la ver para onde isto vai ..

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  2. Fonix...por momentos perdi-me grande, turnaround 🤔

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  3. Perdi me um pouco, como assim ela tinha uma missão antes desta!? Parabéns Paula. Patrícia Barbosa

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  4. Hum... Aguardando e vendo o que o último capítulo nos reserva.

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  5. Uma missão dentro de oitra missão. Grande reviravolta outra vez. Vamos ver onde vai para a história e qual o desfecho de Vitória. Muito bom parabéns.

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  6. Estou muito confusa e intrigada sobre como esta história irá terminar. Muitos parabéns a todos até agora, está espetacular!

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  7. Mais uma reviravolta 😍 muitos parabéns!

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  8. Estou um bocadinho confusa, mas espero que no próximo capítulo tudo faça o sentido que uma história deve fazer. Parabéns à Paula e a todos os escritores!

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  9. Fiquei um pouco confusa, uma missão dentro de outra? De qualquer modo, a história continua muito interessante.

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  10. Agora fui apanhada de surpresa, então eles não se conheceram normalmente, foi tudo planeado??? E a Vitória também faz parte duma organização secreta??? Vamos lá descobrir o que se está a passar.

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  11. Perdi-me um pouco neste capítulo...tudo apontava que a Vitória estava a ser "apanhada", mas pelos vistos não...

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  12. Uau!! Por esta não esperava! Grande revelação desta nossa personagem principal! Vamos ver como termina👏

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  13. Parabéns, está fantástico!!!
    Mais uma continuação incrível
    Vamos ver no que se segue...

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  14. A pergunta que ficou a matutar: afinal, quem é a Vitória? O Bruno vai ter aqui um grande trabalho, já estou mesmo a adivinhar :)

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  15. Gostei da escrita e o mistério aprofunda-se.
    Várias missões, qual a inicial, porquê e para quê? Ia numa direcção, mas agora fiquei 😮🧐🤔.
    Parabéns!

    Bruno estou super empolgada para ver o desenrolar/desfecho destas reviravoltas todas.

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  16. Bem eu ainda estou sem perceber se o Gonçalo é dos bons ou não. Partilho desta ideia que ele não é dos bons e é um manipulador. Ansiosa por ver como termina!

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