Parte IV - Rita Nobre Mira

 


 — Por onde andaste? – questionou Pedro enquanto a segurava pelo braço, numa tentativa de não a deixar escapar. Já sabia que era esquiva e vaga nas respostas.

— Pelos sítios do costume. Nada de novo. Nada de interessante – respondeu da forma mais tranquila que conseguiu fingir.

— Eu conheço-te bem, Vitória. Não me estás a dizer a verdade – suspirou aquela frase como se de uma prece se tratasse.

Vitória encolheu os ombros, libertando-se de seguida do aperto que a mão dele lhe fazia na pele.

Já no interior da esquadra, sentada de pernas cruzadas sobre uma pilha de livros, processos e papelada variada, não conseguia deixar de pensar em tudo aquilo. A sua intuição continuava a dizer-lhe que tinha de saber mais, ir mais fundo naquela história. Sabia que não iria conseguir viver o resto da sua vida no desconhecimento, no escuro sobre aquela missão. Era curiosa demais para que tudo ficasse assim – sem respostas.

Apesar de saber os riscos que podia correr, até porque não podia contar com a ajuda do seu companheiro de aventuras Pedro, a sua teimosia fê-la tomar uma decisão. Só esperava não se arrepender.

Nestas alturas, pensava sempre nos conselhos da avó Mi – Miriam de seu nome – e que lhe vinham à cabeça como se gavetinhas com memórias se abrissem lá dentro e lhe sussurrassem ensinamentos. Mais vale arrependeres-te daquilo que fizeste, do que arrependeres-te daquilo que não fizeste! Era uma visão tão clara da sua Mi, de cabelo grisalho enrolado num pequeno coque no cimo da cabeça, vestindo um avental de xadrez com o seu nome bordado. Vieram as saudades.

Enxugou rapidamente os olhos humedecidos. Não havia tempo para lamechices!

Levantou-se num ápice, atirou para o ar um vago volto já e saiu.

Caminhou lenta e vagarosamente até às ruas que circundavam o cais. Já havia espreitado e o barco não se encontrava ali ancorado. Apenas um lugar vazio. Fazer um compasso de espera era a sua única alternativa.

Podia pensar, sabendo-se ser uma pessoa crente, ser um sinal para desistir. Estava sempre muito atenta aos sinais que o universo lhe enviava. Confiava neles como um cego confia na sua audição para não se perder no caminho. Acreditava que nada acontecia por acaso e aquele pacote, que tinha estado nas suas mãos, tinha de ter algum propósito.

Eram vidas, muitas vidas, todas as vidas. A sua vida.

Aproveitou o compasso de espera para comer alguma coisa rápida num restaurante barato que se encontrava ali perto do porto. Não sabia quanto tempo iria ficar sem comer desde o momento em que decidisse entrar naquele barco. Pediu algo simples, mas com alguma robustez calórica: um hambúrguer duplo com queijo, tomate e cebola confitada e batata-doce frita. Prescindiu da salada. Que se lixe a dieta!, pensou.

Enquanto mordiscava as batatas fritas, pensou na vida feliz que podia ter tido se tivesse aceitado o pedido de casamento do Gonçalo. Ele tinha tudo para ser a sua pessoa. Pelo menos era o que toda a gente à sua volta lhe dizia. Ao início, ainda dava ouvidos aos incentivos da família e amigos mais próximos. Agarra o rapaz, Vitória! Homens como ele já não se encontram muito por aí. É giro que se farta.

Levou as coisas até quase ao ponto de não retorno. Deixou-se envolver pela pressão alheia e entregar-se a uma paixão que até sentia, mas não o suficiente para avançar.

No dia em causa, tinham ido de fim de semana para Paris – coisa um pouco cliché para o seu gosto – e aí o Gonçalo abriu uma pequena caixa. O anel brilhava tanto quanto os seus olhos. Estava claramente emocionado.

Ficou sem saber o que dizer. Sempre fora daquelas pessoas que passava despercebida e estava agora no spotlight de uma história a dois, cujo final não queria que se concretizasse. Sentia-o de coração e sabia que não era aquele o seu caminho.

A ausência de uma resposta foi suficientemente esclarecedora. Para bom entendedor, meia palavra basta.

Passou o resto daquela noite sentada, sozinha, a contemplar a vista inacreditável dos Champs-Élysées, com o coração partido por se sentir uma fraude. Como fora possível dar tanta esperança àquela pessoa que apenas merecia o melhor?

Foi contestada pelos mais próximos. Como pudeste fazer isso? Ele não merecia tal coisa! A vida nunca foi ingrata para ti. E mais umas quantas outras coisas que teve de ouvir e engolir.

Um barulho de barcos a apitar trouxe-a de volta dos seus pensamentos. Voltando à realidade, apressou-se a comer o hambúrguer, a pagar a conta e a sair.

Ao virar a esquina que dava para o deck onde tinha feito a transação suspeita, sentiu um frio no estômago; um calafrio no âmago maior do que aquele que sentiu quando lhe colocaram o pacote nas mãos. Agora estava mesmo por sua conta. Ninguém sabia onde estava e o que ia fazer. Estaria louca? Talvez. Mas sentia que tinha de fazer algo por si, pela sua vida. Deixar o marasmo em que a sua vida se tornara e quebrar as paredes da caixa que a aprisionavam, da espelunca onde vivia.

O seu coração começou a bater descompassadamente quando viu o barco de novo atracado. Esperou um pouco para perceber se havia algum movimento no seu interior e ficou mais de uma hora apenas a observar. Ninguém. Nem uma vivalma se assomava.

Era hora de fazer qualquer coisa e a sua intuição fê-la aproximar-se do barco e, com algum cuidado, colocar os pés na borda para saltar para o seu interior – tarefa que se mostrou fácil, pois a água estava calma fazendo com que o barco não oscilasse.

Olhou em redor. Estava bastante desarrumado, havendo caixas de plástico e de madeira espalhadas pelo convés, bem como uma pilha de redes velhas e rotas cheias de verdete. O cheiro era nauseabundo, o que a fez acreditar que talvez fosse um barco de pesca. O chão tinha água amarelada, o que fazia com que chapinhasse a cada passo que dava, denunciando a sua presença.

Recorreu aos seus dotes de bailarina – tinha tido aulas de ballet em criança, mas que nunca pôde levar muito a sério por os seus pais acharem que não havia futuro na dança – e caminhou nas pontas dos seus sapatos, bem devagarinho.

Agachou-se junto a um bidão cinzento cheio de material enferrujado e escondeu-se o melhor que pôde. Não podia fazer mais senão esperar… mais uma vez.

Só queria ouvir uma conversa, um nome, uma explicação. Qualquer coisa que lhe desse uma pista. E depois, sairia dali ilesa e decidida a dar à sua vida um rumo diferente.

A noite aproximava-se e um vento fresco começou a correr.

Ouviu um ladrar ao longe, depois, mais perto e, por fim, mesmo junto dos seus ouvidos. Com um dedo pediu silêncio - como se o cão lhe fosse obedecer para não a denunciar.

Começou a dançar” à sua volta, abanando o rabo e ladrando cada vez mais alto. Não lhe queria fazer mal. Apenas queria festas.

E foi quando ouviu o som de umas botas pesadas a pisar a água.

— Está aí alguém? — perguntou um homem com uma voz ameaçadora.

Comentários

  1. Reviravolta interessante, vamos la ver para onde os autores levaram isto ;D

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  2. E a história começa a desenvolver, parabéns Rita. Patrícia Barbosa

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  3. Bora lá ao seguinte ... a avó Miriam tem muita razão, as avós têm sempre razão 😉

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  4. Esta parte tem um bocadinho de romance :D que mix na história que a torna ainda mais interessante

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  5. Owh muito bom, quero mais! Parabéns por este capítulo cheio de mistério.

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  6. Estou a gostar muito do desenvolvimento da história. A Vitória continua a surpreender-me!! Muito bem Rita!!

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  7. Uma reviravolta. Estou a adorar cada vez mais curiosa.A história está tão bem ligada que até agora me parece escrita pela mesma pessoa. Muito bom mesmo

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  8. Adorei este twist, estou cada vez mais surpreendida com este desenrolar de acontecimentos

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  9. Cada vez mais curiosa com o desenrolar desta história 😍 muitos parabéns!!!

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  10. Curiosa pelo capítulo seguinte... Parabéns!

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  11. Esta história está a ser fantástica.
    Parabéns

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  12. Aqui a Rita dá-nos a conhecer um pouco mais a personagem principal, a Vitória.
    Cada vez mais viciada na leitura deste conto.

    Ainda não comentei, mas a ideia da Dora foi genial e o fruto dessa mesma ideia está cada vez melhor.
    Acabei agora este capítulo e aproveito para dar os meus parabéns aos autores. Vocês são magníficos. Quero mais!! Eu sei ainda tenho mais alguns capítulos, mas com este aperitivo, sopode mesmo ficar melhor.

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  13. Um capítulo bem interessante e que no permite conhecer um bocadinho melhor a Vitória.

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  14. Afinal temos uma Vitória com uma vida pessoal , que não só a profissional, com sentimentos mas muito solitária.

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  15. A história está a ganhar mais ritmo😉. A Rita terminou o capítulo deixando suspense no ar👍. Muito bom!

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  16. A Rita teve a excelente iniciativa de nos contar um pouco mais sobre a Vitória, o que é fundamental para começar a perceber outros comportamentos daqui para a frente, quero acreditar. Bom ritmo! :)

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  17. Muito interessante!!! A avó Mi, o Gonçalo, a Vitória bailarina, o cão... adorei estes elementos novos que foram adicionados à história. Confesso que esta era uma das partes que tinha mais curiosidade, por ter ouvido a Dora dizer várias vezes que a Rita Nobre Mira é escritora de literatura infantil. Sorri ao ler que o Pedro é o companheiro de aventuras de Vitória. A mim remeteu-me a esse mundo mais infantil, mas se não soubesse disso, nem reparava :) Gostei muito!!!

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  18. Gostei desta junção da vida pessoal (avó, ex-namorada, novo rumo da vida...) com a profissional.
    E o suspense final está fantástico.
    Parabéns!

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  19. Bem a Vitória que parecia tão fraca e medrosa está a revelar-se muito curiosa e decidida a procurar o que não devia.

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  20. Muitas "janelas abertas" por onde sair a seguir... muito bom.

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