Parte II - Rui Pinto Ferreira
No caminho de regresso parecia transportar o peso de dez ou vinte embrulhos às costas. Como se tivesse entregado um pacote vazio e trazido de volta todas as vidas que ele encerrava. São vidas, muitas vidas. A minha vida. Repetia até à exaustão, procurando justificar tudo aquilo que tinha acabado de fazer. De passos curtos, entrecortados por uma brisa vespertina que lhe enrolou o casaco, Vitória olhou os prédios cinzentos, cada vez mais cinzentos à medida que se afastava do porto e entrava na zona mais antiga da cidade. Como esta gente mudou! Não reconhecia os rostos fechados, acabrunhados, que passavam de forma lesta. Não reconhecia aqueles bairros que a acolheram havia mais de quinze anos, quando era jovem e inocente e acreditava que ia mudar o mundo. Mas fora ela quem, afinal, mudara; ela, as pessoas e a cidade.
Apertou mais o casaco e encolheu a
cabeça entre as golas altas, escondendo a sua vergonha. A ansiedade deu lugar à
culpa. Toda aquela culpa que procurou afastar nas últimas quarenta e oito horas
em que dormiu com o embrulho pardo. Já não o tinha. Estarei livre? Sabia
que não.
Rodou a chave da velha porta de
madeira vermelha do número 45. Olhou os dois algarismos, pareciam tão cansados
quanto ela. Subiu os degraus matracando os sapatos gastos, contando uma a uma
as vidas que estavam marcadas naquela escada. Ao aproximar-se do seu
apartamento, no primeiro andar, teve a leve convicção de que seria a última
noite que ali ficava.
Deixou-se cair na cama, mais
confortável desde que o pacote dali saíra. Dormira com ele, mas não pregara
olho, como se contemplasse, preocupada, a respiração pausada de um filho seu, à
espera de que uma batida descompensasse o ritmo a qualquer momento. Exausta,
adormeceu a pensar se seria capaz de entrar naquela esquadra novamente. É
irónico. Desde criança que era boa nas adivinhas, a descobrir segredos, a
escutar e a discernir. O seu trabalho era arrancar confissões, coisas obscuras.
Agora era ela que ocultava uma grande mentira. São vidas, muitas vidas. A
minha vida.
De manhã calou o despertador com uma pancada
odiosa. Ergueu-se ensonada, tirando o casaco que na véspera não tivera forças
para despir. Os sapatos jaziam desarrumados no soalho carcomido. Atirou a
camisola para a cadeira solitária que habitava o quarto despido. Olhou em volta
ainda toldada. Quinze anos depois ainda vivo nesta espelunca. Mas é
por pouco tempo.
Quando ligou a água do chuveiro foi a
primeira vez que o rosto dele lhe assomou aos pensamentos desde que aquilo
começara. Foi o único que traí. Mexeu de forma indelével os lábios -
quase esboçando um tímido sorriso. Das centenas de colegas que trabalhavam na
unidade especial, ele era o único que lhe importava ter traído. Mas como podia
confiar neles? E revolveu de novo as entranhas à procura da resposta que não
tinha encontrado durante toda a semana que passara a remoer aquilo. Muitas
vidas, continuou a concluir sem ter a certeza de nada, a não ser o facto de
que aquela alma espelhada nos seus grandes olhos negros estava cada vez mais
sombria.
Saiu de casa sem saber ainda se seria
capaz de voltar a entrar na esquadra. Rodou a chave da porta vermelha, de novo
com aquele sentimento de abandono, como se o embrulho pardo a tivesse dado para
adoção e ainda ninguém a tivesse resgatado. De novo a sensação de alienação.
Aquela cidade já não era a sua. Teria de procurar um novo lar.
Não sou corajosa. E
ao guardar na carteira esbatida a chave daquele lugar, procurou algo que lhe
evidenciasse o contrário, os dedos esguios roçaram a superfície rugosa do distintivo
da “Unidade Especial Contra o Crime
Organizado”. Como o papá ficara orgulhoso. É mais trabalho de secretária,
respondera na altura procurando desvalorizar-se, como sempre fazia, mesmo sendo
a aluna com a melhor nota de entrada no curso, a melhor aluna do colégio. A
insegurança acompanhava-a sempre, menos nos interrogatórios. Temerosa, pensou
se vacilaria se enfrentasse alguém do seu calibre, agora que escondia aquele
grande segredo. Todos vacilam. Todos acabam por quebrar.
A cidade acordava sob um sol frouxo.
Vitória retardava o passo, mas os ponteiros ditatoriais do relógio levaram-na
sem soluços.
— Bom dia, Vitória! O pessoal
estranhou não teres aparecido no sábado – disse um colega do piso quatro,
surpreendendo-a. Parecia que tinha a bomba nos braços e a deixara cair ali,
amachucada como na véspera.
— Olá… Bem, adormeci…. Ando um pouco
cansada – despejou as palavras da garganta e pensou que, se fosse ela, captaria
facilmente um mentiroso.
O colega desinteressou-se pela
conversa, pois algo chamou a sua atenção. Vitória aproveitou a oportunidade
para colocar alguma distância entre eles e acercar-se da porta da esquadra. Então,
mas decidi entrar? Nunca se deve voltar ao local do crime. Mais uma regra
que tinha infringido.
Passou a grande porta no cimo da
escadaria, cada passo parecia mais pesado, como se arrastasse todas as vidas
consigo. Cruzou os torniquetes mostrando a identificação. Sorriu. Retirou os
óculos de sol, desnecessários, mero acessório para se esconder. Preparou a
perna trôpega para ultrapassar os degraus interiores, mas sentiu um braço que a
arrastou. Fui eu. Não sou corajosa, mas as vidas, todas aquelas vidas. A
minha já não importa.
Que trabalho incrivel que o rui fez, nem parece outra pessoa a escrever a continuaçao do texto anterior. Muito bom e cada vez mais curiosa!
ResponderEliminarRui, gostei imenso da forma como deste continuidade à narrativa. Muito bem escrito, e o mistério continua... Parabéns!
ResponderEliminarMuito bom...Excelente trabalho!
ResponderEliminarEstou a gostar imenso!
O próximo fica para amanhã.
Incrível como a vossa escrita flui como se não tivesse alterado o escritót. Parabéns Rui. Patrícia Barbosa
ResponderEliminarGostei muito até agora! Como já referiram as duas escritas são muito semelhantes e agora resta-me continuar. Parabéns ao Rui e à Célia!
ResponderEliminarO Rui conseguiu manter o mesmo registo da Célia, o que é extraordinário. A personagem ganhou corpo e o gancho que deixou pode ser muito bem aproveitado. Parabéns, Rui!
ResponderEliminarAinda em ânsias para saber o resto 😱 continuo agarradíssima a estas páginas.
ResponderEliminarParece que foi a mesma pessoa a continuar. Acho que vou acabar rapidamente
ResponderEliminarEsta continuidade está espetacular 😊
ResponderEliminarO Rui deu uma excelente continuidade ao texto da Célia. Gostei mesmo muito de toda a descrição feita à personagem. Muito bom!
ResponderEliminarNão estava à espera desta continuação. Muito bom. Parabéns Rui
ResponderEliminarVou até ao próximo
Parece até que foi a mesma pessoa a ecrever!
ResponderEliminarMuito bom o Rui deu um seguimento à história muito bom. Muito bem escrito. Continuando a ler cada vez mais curiosa.
ResponderEliminarUma incrível continuação. Se eu não soubesse que tinha sido outro autor a escrever, pensaria que tinha sido tudo escrito pelo mesmo. Excelente trabalho e adorei o desenrolar da história
ResponderEliminarQue continuação espetacular Rui, não senti diferença nenhuma de autor. Muitos parabéns!!!
ResponderEliminarNem parece que foi outra pessoa a escrever este segundo capitulo.
ResponderEliminarParabéns
Muito obrigado pelos vossos comentários. Foi um prazer dar continuidade à personagem criada pela Célia. Segurem-se bem, porque a história vai acelerar...
ResponderEliminarGostei muito desta continuação 😊
ResponderEliminarE o mistério continuação 😮😯😲. Se não soubesse diria que seria o mesmo escritor a desenvolver a história.
ResponderEliminarAinda não li nada do Rui, mas gostei do modo como ele deu continuidade ao mistério.
Excelente, Rui! Nem se nota a transição da Célia para ti!!
ResponderEliminarO mistério adensa-se e a curiosidade aumenta. Yes!!!!!
ResponderEliminarBoa Rui, agarraste bem o fio condutor! 👍
Não conhecia o trabalho do Rui, mas vou ter de conhecer. Que continuação tão bem escrita e nem se nota que mudou de escritor. Tanto a nível de ideias como de linguagem. Muito bom!
ResponderEliminarO Rui fez um óptimo trabalho. Teve a preocupação de manter o mesmo tom que vinha da parte anterior e isso, na minha opinião, foi um ponto muito positivo para a história.
ResponderEliminarUau, adorei! Muito interessante, a forma como a história se desenrolou.
ResponderEliminarNão sei até que ponto o estilo do autor mudou para dar continuidade à primeira parte, mas estou muito curiosa para saber. Aliás, o "Almas Gémeas" já estava na minha lista, mas ao ouvir o podcast decidi que vou comprá-lo já esta semana, será a minha próxima leitura :)
Obrigado Anabela. Boas leituras!
EliminarAdorei a ligação com o texto da Célia!
ResponderEliminarA personagem ficou mais interessante e o mistério continua.
Parabéns!
Ainda não tive a oportunidade de ler o livro do Rui, mas adorei a forma como continuou a história começada pela Célia, estou curiosa.
ResponderEliminarO embrulho era mesmo uma bomba?
Vitória faz parte de uma brigada contra o crime e decidiu infringir as regras?
Vamos ver o que se segue.
Gostei muito da escrita do Rui. O mistério adensa-se.
ResponderEliminarExcelente trabalho, densidade e fluidez. Muita qualidade.
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