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  Um conto original de nove autores portugueses:   parte i – Célia Correia Loureiro   parte ii – Rui Pinto Ferreira   parte iii – Lénia Rufino   parte iv – Rita Nobre Mira   parte v – Iris Bravo   parte vi – Márcia Balsas   parte vii – MG Ferrey   parte viii – Paula Cordeiro   parte ix – Bruno M. Franco   edição e revisão : Moisés Pampim Design :  Fernando Ferreira   Uma ideia original criada por Dora Santos Marques para o projeto “De página em página”.

Parte I - Célia Correia Loureiro

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    Apertou o pacote contra o estômago e, ao sair para a rua, não resistiu a olhar para os dois lados. Era precisamente esse tipo de comportamento que tinha de controlar se não queria dar nas vistas. Aquele embrulho, que encaixava com precisão no embalo dos seus braços, continha muitas vidas. A sua tornara-se uma delas assim que concordou em transportá-lo.   Caminhou com uma falsa determinação. Parecia ter-se esquecido de como andar. Os passos embrulhavam-se uns nos outros, como que enrodilhados, mas ela continuava, mantendo sempre os olhos fixos nos pés, nos sapatos discretos e nas passadas apressadas. Tinha de se recompor e, acima de tudo, tinha de agir como se não carregasse uma bomba nos braços.   Não é uma bomba, não é nenhuma bomba, repetia. Mas são muitas vidas, muitas vidas.   A meio da distância a percorrer, começou a suar. Era cedo demais para suar e ter essa consciência fê-la transpirar ainda mais. Sentia, ao avançar por entre a multidão tacitu...

Parte II - Rui Pinto Ferreira

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  No caminho de regresso parecia transportar o peso de dez ou vinte embrulhos às costas. Como se tivesse entregado um pacote vazio e trazido de volta todas as vidas que ele encerrava. São vidas, muitas vidas. A minha vida. Repetia até à exaustão, procurando justificar tudo aquilo que tinha acabado de fazer. De passos curtos, entrecortados por uma brisa vespertina que lhe enrolou o casaco, Vitória olhou os prédios cinzentos, cada vez mais cinzentos à medida que se afastava do porto e entrava na zona mais antiga da cidade. Como esta gente mudou ! Não reconhecia os rostos fechados, acabrunhados, que passavam de forma lesta. Não reconhecia aqueles bairros que a acolheram havia mais de quinze anos, quando era jovem e inocente e acreditava que ia mudar o mundo. Mas fora ela quem, afinal, mudara; ela, as pessoas e a cidade. Apertou mais o casaco e encolheu a cabeça entre as golas altas, escondendo a sua vergonha. A ansiedade deu lugar à culpa. Toda aquela culpa que procurou afastar nas ...

Parte III - Lénia Rufino

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  Quarenta e oito horas antes.   Vitória saiu do edifício numa espécie de transe. Fora chamada ao gabinete de Isabela Cruz, que ocupava o topo daquela cadeia alimentar. Pouca gente ousava questionar o percurso que Isabela percorrera até ao cimo da hierarquia. A mulher, um portento de cinquenta e dois anos que não deixava margem para que se duvidasse das suas capacidades, era, ao mesmo tempo, uma inspiração e uma ameaça para todas as mulheres naquela unidade. E ela sabia-o. Não deixava que nada a intimidasse. Às mulheres que chefiava, dava sempre apenas um conselho no primeiro dia de serviço: aponta sempre à jugular . Aos homens não dava conselhos - esperava que tremessem perante uma decisão que era preciso tomar e então dizia-lhes pensa como uma mulher . Em menos de três anos, montara a mais poderosa unidade de combate ao crime organizado que aquela cidade já vira. Quando Vitória se sentou em frente a Isabela, não imaginou que aquela conversa viesse a mudar o rumo da s...

Parte IV - Rita Nobre Mira

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    — Por onde andaste? – questionou Pedro enquanto a segurava pelo braço, numa tentativa de não a deixar escapar. Já sabia que era esquiva e vaga nas respostas. — Pelos sítios do costume. Nada de novo. Nada de interessante – respondeu da forma mais tranquila que conseguiu fingir. — Eu conheço-te bem, Vitória. Não me estás a dizer a verdade – suspirou aquela frase como se de uma prece se tratasse. Vitória encolheu os ombros, libertando-se de seguida do aperto que a mão dele lhe fazia na pele. Já no interior da esquadra, sentada de pernas cruzadas sobre uma pilha de livros, processos e papelada variada, não conseguia deixar de pensar em tudo aquilo. A sua intuição continuava a dizer-lhe que tinha de saber mais, ir mais fundo naquela história. Sabia que não iria conseguir viver o resto da sua vida no desconhecimento, no escuro sobre aquela missão. Era curiosa demais para que tudo ficasse assim – sem respostas. Apesar de saber os riscos que podia correr, até porque não ...

Parte V - Iris Bravo

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Vitória manteve-se imóvel e em silêncio, a respirar superficialmente e arrependida daquela decisão pouco sensata. A constatação de que ninguém sabia onde estava e que dependia apenas de si própria fazia-a transpirar das mãos com as quais se apoiava num pedaço de metal frio. Ouviu um assobio, o cão correu na direção do som e percebeu que os passos pesados se afastavam. Após alguns minutos, durante os quais não se atreveu a sair do seu esconderijo, distinguiu novas vozes masculinas dentro do barco e reconheceu a voz rouca do marinheiro do dia anterior; esta falava sobre um chefe, que aguardava a encomenda e iria ficar satisfeito. A par da conversa que tentava escutar, sentiu movimentações e sobressaltou-se com o ruído áspero de um motor a trabalhar. Quando ganhou coragem para espreitar por trás do bidão que a resguardava, estremeceu ao descobrir que estava a ser vigiada. Era difícil ter a certeza devido à penumbra e ao primeiro encontro fugaz, mas ia jurar que era o desconhecido que ...

Parte VI - Márcia Balsas

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  Acordou com a boca seca. Sentiu uma pressão forte no braço esquerdo onde, por instinto, levou a mão direita. Olhou em redor, estava num quarto desconhecido, deitada numa cama enorme, usando um vestido comprido. Um vestido branco, muito simples, de alças, cintura alta, tão longo que lhe escondia os pés nus. Ergueu-se, observou a gaze no antebraço e, tão próximo, no dedo ligado ao coração, o anel. Uma fadiga súbita obrigou-a a deitar-se; levou as mãos às fontes para contrariar a pontada repentina. Fez por se lembrar, apesar de não saber o que procurar na memória. O esforço de unir pontos, a experiência de seguir pistas, o diabo sempre, sempre nos pormenores. Anel, brilho, uma caixa que se abre, Paris. O anelar esquerdo numa roda de fogo. Gonçalo à sua espera no cimo da escada, e depois, o mundo apagou-se. Aos poucos saiu do que parecia ser uma neblina. A memória recuperou peças-chave, o constante embalo das ondas deu-lhe conta de uma localização incerta. Um quarto, ou talvez um...

Parte VII - MG Ferrey

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  O rosto dele era firme, mas simultaneamente afável. Como é que ele conseguia ter tantas caras? E como conseguira armar toda esta cilada e raptá -la?, pensou . Tinha de se concentrar em arrancar o máximo de informação que conseguisse para montar este puzzle . Conhecia os pontos fracos de Gonçalo, pelo menos assim esperava. Neste momento era tudo o que jogava a seu favor, achar que conhecia minimamente aquele homem, que em tempos amou, e esperar que os pequenos detalhes que lhe foi aprendendo fossem verdadeiros. Tinham de ser, certo? O olhar apaixonado quando lhe sorria, o toque quente e suave dos seus dedos contra a sua pele. Houve bons momentos, até ela deixar de os querer partilhar com ele.   Agora nada disso importava, apenas sair dali. De preferência incólume. Pensou nas outras vidas, muitas vidas. O que quer que isso significasse. Que outras vidas seriam essas? E pensou na sua vida… Agora em pedaços e presa por um fio. Gonçalo sentou-se à sua frente, tocou com o copo ...

Paula VIII - Paula Cordeiro

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  Ficou calada. Desviou o olhar, procurou um ponto onde fixar a sua atenção. Gonçalo falava, mas Vitória só pensava numa forma de sair dali e arrumar este tema para sempre. São vidas, muitas vidas. A minha vida. Vitória tinha agora outra missão, que se autoimpôs, de descobrir que vidas eram aquelas e que pacote era aquele. Sobretudo, o que tinha feito Gonçalo estar envolvido nesta história e por que razão a queria reconquistar agora. As pessoas nunca são o que pensam que são e, raramente, sabemos quem são. Gonçalo foi sempre egocêntrico e manipulador, sem perceber como pode o manipulador ser manipulado ou como pode a pressão da manipulação tornar-se uma força que nos norteia e torna mais fortes, nessa ânsia em escapar. Quando se conheceram, Gonçalo não percebeu que foi Vitória que se aproximou dele e o fez apaixonar-se, como não percebeu que a sua beleza provocadoramente frágil foi definida ao mais ínfimo detalhe para encaixar no seu perfil autocentrado. Era sempre ele que ...

Parte IX - Bruno M. Franco

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Gonçalo segurava as mãos trémulas de Vitória enquanto, pávido e aparentemente sereno, digeria as últimas palavras da sua esposa. — Tu… nunca me amaste? Nunca? — afrouxou o aperto e Vitória soltou-se. — Nem mesmo naquela viagem a Paris? Eu sei que estávamos os dois a cumprir as nossas missões, mas eu tenho a certeza que ali, naquele dia, amávamo-nos. Teremos sempre Paris, meu amor. — Os meus amigos e a minha família bem que me tentaram convencer de que tu eras um homem único; um homem que qualquer mulher desejaria ter. Que és único, disso não há dúvida nenhuma. — Gonçalo sorriu, até ela ter completado o pensamento: — A única merda que me estragou a vida! — Estás a delirar, só pode. Deve ser do soporífero que te demos quando te trouxemos para cá. — Não estou, não. Tu és convencido, manipulador e egocêntrico. Que mulher haveria de querer um homem assim? Nem que fosses o último homem à face da terra e a espécie humana dependesse de nós os dois eu iria querer ficar contigo. — Eu faria qualq...